Falei que queria deixar este blog menos sério, mas tem hora que não consigo. Lá vou eu baixar pitaco de novo…
Bom, o Tribunal Penal Internacional (TPI) é uma das primeiras sementes de uma infra-estrutura supranacional (talvez a única) no mundo de hoje. Em um mundo globalizado e desigual, eu particularmente vejo pouca alternativa para resolver os problemas mundiais fora da construção de uma infra-estrutura como esta (pros estudiosos do campo da globalização, estou no campo dos cosmopolitas!).
O TPI existe, mas muita gente questiona a sua funcionalidade. É por isso q eu acho que este é o momento da verdade: o TPI é apenas uma fachada de um sistema de justiça internacional? Ou é um instrumento efetivo para corrigir graves crimes que nenhum outro tribunal tem jurisdição para julgar? Afinal, ele funciona?
Digo isso porque a emissão de mandado de prisão contra o presidente do Sudão, acusado de crimes de guerra e crimes contra a humanidade, é uma jogada de alto risco. De um lado, muitos movimentos e organizações de direitos humanos aplaudiram. De outro, alguns governos (me parece que a China é um deles, de acordo com a BBC), já disseram que um mandado como esse é inaceitável, pois viola a soberania de um país.
O termo ‘soberania nacional’ é a chave. O sistema internacional, desde a Paz de Westfália, que é considerada a fundação do sistema de estado-nação moderno, é baseado no princípio da inviolabilidade da soberania nacional. Mesmo o sistema das Nações Unidas é fundamentado neste princípio. Os capacetes-azuis, as forças armadas da ONU, nada mais são do que um país comandando cada missão – a ONU não tem, no fundo, poder ‘executivo’. Mesmo as decisões do Conselho de Segurança são aplicadas por países-membros, não pela ONU em si.
O princípio da soberania, nessa lógica, é absoluto. Dessa forma, ele é incompatível com a idéia de um órgão supranacional, ou seja, um órgão que está acima das nações – como é o caso, em teoria, do TPI. É por isso, inclusive, que o TPI foi estabelecido por um tratado, o Tratado de Roma, e os países que não aceitam jurisdição do TPI simplesmente não assinaram o tratado (caso dos EUA, por exemplo). Mas existem exceções: o TPI pode ser chamado a tratar um caso pelo Conselho de Segurança. Desde meados da década de 90, suspeitas de crimes contra a humanidade são consideradas ameaças à segurança mundial, e por isso o Conselho de Segurança pode tratar do assunto. É o que acontece com Darfur, o caso que gerou os mandatos contra o presidente do Sudão.
Daí surge um motivo óbvio para o Sudão rejeitar o que o TPI diz: o país não assinou o Tratado de Roma.
Agora, existe outro problema. Qualquer órgão de Justiça, para ser efetivo, precisa contar com alguma instituição que faz valer as suas decisões (enforcing, em inglês). Por exemplo, a polícia: é ela que prende alguém que foi condenado à cadeia. Também é o sistema carcerário, que mantém as pessoas presas.
O TPI, no momento, não tem nenhum desses instrumentos. Uma prisão será construída em Haia para o TPI, pelo governo holandês, o que é um bom começo. Mas o TPI não conta com uma força policial (internacional) própria. Até hoje, quem prende são os países. E quem vai prender o Presidente do Sudão?
Em princípio, todos os países-membros do Tratado têm o dever de prender o cara. Mas alguém vai? Alguém vai invadir o Sudão? Ou o cara vai ficar livre, sendo que todo o planeta sabe onde ele está?
É claro que o TPI tem consciência desse dilema. Gostaria de saber qual foi a aposta deles, ao emitirem o mandado de prisão. É um blefe, uma forma de capitalizar a atenção do mundo para a questão de Darfur e fazer com que o governo do Sudão mude suas políticas? Ou é uma jogada de marketing que visa apenas manter a ‘cabeça’ do TPI acima da água, contra as críticas de que o tribunal não toca em vespeiro?
Uma coisa que me ocorre (mas que é quase suicida) é que um ato como esse vai por a nu as ineficiências e contradições do modelo atual do TPI. Isso tem dois riscos possíveis, mas excludentes: um) o modelo ‘supranacional’ se mostra uma falácia inexeqüível, é descartado e esquecido; ou dois) a idéia é revista, em um contexto que assume que a soberania de nenhum país é um valor absoluto, permitindo a construção de um sistema supranacional muito mais amplo e efetivo (ou seja, que vai muito além do TPI). Isso incorreria em uma baita reforma das Nações Unidas, no mínimo.
Nenhum destes cenários é de curto prazo. Mas os próximos meses podem apontar alguns indícios. Imagino que alguns países vão assumir a postura padrão: se o cara pisar em um de seus aeroportos, ele será preso – obviamente, o presidente do Sudão saberá de antemão e não viajará. Outros vão fingir que não é com eles e vão continuar como sempre – provavelmente, a China fará isso.
Quando saberemos se o TPI passou ou não no teste? Francamente, acho que uma falha é bem provável, mas é difícil imaginar quando saberemos. Mas tal falha ainda pode levar a um bom resultado, no longo-longo prazo. Infelizmente, tarde demais para as centenas de milhares de vítimas em Darfur.
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